sábado, 8 de outubro de 2011

Miriam e o Menino que não respirava

Da minha janela, dá para se ter uma ótima visão da casa dela, seu nome eu não sei, mas o ar de mistério com que ela sai todos os dias de casa me intriga, sempre sai às 8h da manhã e retorna às 9h, com duas sacolas nas mãos. O que tem naquelas sacolas é, com certeza, algo mais misterioso do que seu olhar. Em uma de minhas observações diárias, vi seu marido saindo para trabalhar como sempre fazia de manhã e voltava à noite. Ela, como todos os dias, às 8h em ponto foi para algum lugar que eu, apesar de curioso, nunca tive coragem de segui-la. Na vizinhança, dizem que ela se chama Joana, ou talvez Margarida, mas acho mesmo que tem cara de Miriam, nome de gente certinha e que adora sair e voltar para casa sempre no mesmo horário. Minha vizinha (Miriam) não saiu hoje, seu marido foi mais cedo, parecia que viajaria e estava atrasado, ela nem apareceu na porta. Dez horas e nada dela aparecer; 11h, ainda nada. Teria Miriam dormido demais? Talvez tenha tomado remédio para dormir e perdido a hora do “sabe-se lá o quê?”. Mas, uma hora ou outra, ela apareceria com sua cara de nada, cabelos presos e roupas em tons escuros, sempre caminhando na mesma velocidade. Não vi Miriam sair, mas vi quando voltou tarde da noite e sem nenhuma sacola! “O marido viajou e ela aproveitou”, pensei. Mas Miriam era mulher de um homem só, o pouco que se sabia sobre eles, era que eram casados há anos e se amavam muito, ninguém nunca ouviu uma discussão vinda daquela casa.

Todo dia levanto cedo, preparo o café da manhã do meu marido que amo muito, e às 8h em ponto, quando ele já saiu para o trabalho, faço o meu hobby diário de passear pelo quarteirão em busca de novidades. Sempre passo no mercadinho para comprar chocolates, um vício, que tem de ser rigidamente controlado - 1 barra por dia - repito todas as manhãs. A de chocolate branco é para o meu marido e o, ao leite, para mim, trago sempre em sacolas separadas, meu cérebro não pode pensar que é tudo meu. A vizinhança é tão chata e monótona, minha única diversão diária é olhar para o rapaz da casa em frente, ele sempre está na varanda ou na janela, não se sabe o porquê, acho que ele possui problemas respiratórios e tem que “tomar um ar” de vez em quando. Todos os dias, às 8h da manhã eu o observo, ele está lá na janela branca com o olhar vazio, acho que ele não estuda, acho que ele não faz nada, só passa o dia tentando respirar e comendo o cereal que a mãe dele traz do supermercado. Tenho vontade de bater na porta e perguntar seu nome, só por curiosidade, mas meu marido não entenderia. Poderia dizer que ele é doente e precisa de visitas. É isso, irei visitá-lo uma hora dessas. Na verdade já tentei fazer isso ontem, meu marido viajou e para não estarem todos atentos saí em horário diferente, dei a volta pela rua, sentei em um banco na pracinha atrás da casa dele, a visão era espetacular, descobriria tudo sobre o menino que não respirava. O dia inteirinho se passou, ele andava para lá e para cá, parecia preocupado, estava esperando alguém chegar e esse alguém não chegava. Eu já estava angustiada quando olhei para o relógio e já era bem tarde, corri para casa. Nesse dia, não comi nenhum chocolate.

Hoje, Miriam saiu de roupa azul cor do céu, eu acho que pela primeira vez eu a vi bonita, talvez eu já esteja acostumado com seu jeito “particular”. Nos últimos dias, Miriam estava inquieta, caminhava mais rápido e o marido ainda não voltara. Se eu lhe desse “Bom dia”, escutaria sua voz e tudo ficaria mais claro, quem sabe espiaria o que tem nas sacolas, disfarçadamente. Está resolvido! Vou dizer “Bom dia, querida vizinha”, sem o querida, apenas “Bom dia”. Ela vai responder e depois nos falaremos regulamente, um dia serei amigo de Miriam e carregarei sua sacola. Hoje, não pude observá-la, estou de saída para um emprego temporário que me arranjaram.

Fiquei surpresa no dia em que o rapaz que não respirava saiu de casa e, com fisionomia de trabalhador, vestia um uniforme verde escuro e parecia até mais saudável. Como meu marido ainda não chegou de viagem, posso voltar um pouco mais tarde para casa. Se eu tivesse carro, poderia oferecer uma carona para o rapaz não se cansar, mas como vou ao mercado a pé, no máximo ofereceria um “Olá”, ele poderia retribuir se fosse educado. Hoje, a vontade de comer chocolate veio em dobro, fui ao mercadinho e quando cheguei entrei em desespero por não ver minha barra na prateleira. Disseram que elas haviam vencido e o pessoal recolheu. Indignada, peguei outra marca e paguei, quando estava de saída alguém do mercado gritou “Ainda tem uma...” Eu nem me virei para ver quem era, estava tão brava que apenas andei para casa e fechei a porta.

Lícia Loltran
Graduanda do 2º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

A Velha Carolina

As semanas passavam lentamente naquele lugar que, ao invés de ser sua moradia, aprisionava sua liberdade de moço. Queria ir à cidade, precisava encontrar a jovem que lhe roubasse todo desejo e desse significado a sua existência. Os dias, cheios de luz e de mística da pequena Fazenda Carolina enchiam os olhos do Veinho, mas não a alma... Todo encanto se fora, transformando-se em lágrimas até se esgotar com o vazio de cada noite dos sete dias da semana e de quanto tempo tivesse.

Queria ir à cidade, precisava encontrar uma jovem que aliviasse todo desejo de ser quem era em sua plenitude de homem, que roubasse as horas e o sossego, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar.

Queria ir à cidade, meu companheiro, amigo de infância! Eu lembro a rua principal de barro seco, por onde as carroças passavam pra chegar à feira e das casinhas da vila, da criança que acenou na porta, será que já cresceu? Eram duas, mas percebeu somente o nome de uma, Carolina.  Não vemos moças por estas terras, somente a menina que vivia a existir nos olhos do bicho, no qual corria o campo, tocava o gado e os dias.
Gostava de enxugar o rosto molhado de suor e água que escorria no canto do olho de quem era sua realidade, trabalho e ilusão. Veinho inclinou-se, com  ternura sobre o dorso do animal, seu companheiro de labuta, e disse: vou viajar.

Surgira do nada, de onde viria tal poeira? Era o único instante em que podia enxergar Carolina, mas, era, de fato, ela? Não sabia, não sabia se tinha crescido, não sabia se era ilusão, mas via, e ele ainda estava a contemplar a menina nos olhos do bicho até o branco se tornar cinza e escuridão. Agarrado no pescoço do animal partiu depressa, como quem foge do vento, do tempo e de si mesmo. Num galope retardado pela travessia do riacho retira um broto da primeira floração para levar ao seu destino. Agora, não tinha mais tempo, precisava correr, o vento logo acalmaria de novo e a mesma vida logo se clarearia diante dos seus olhos quando avistou a estrada de barro e a mesma casinha na qual as meninas brincavam na porta.

Queria ir à cidade e encontrar as mesmas meninas. Será que Carolina cresceu? Precisava encontrar a jovem que aliviasse todo o seu desejo, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar. Uma senhora aparece com uma jovem na porta, com as mesmas feições de juventude guardadas na memória de Veinho que entregou a flor do Mandacaru e disse: Carolina? E a menina pergunta: Essa flor é pra vozinha? Vou levar lá dentro. Veinho compreendeu, então, que o tempo lhe passara despercebido diante dos seus olhos empoeirados.

Precisava voltar pra Fazenda Carolina onde a menina esperava por ele, jovem nos olhos do bicho. Como de costume, antes de montar, enxugou o rosto molhado de suor e água que escorreu no canto do olho. O dia começa a clarear. E a velha irmã gêmea Carolina, aparece na porta de casa para acenar um novo adeus.

Michael Ribeiro
Graduando do 6º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Quer casar comigo?


Aquela pergunta não lhe saia da cabeça. Por quantos anos esperou, ansiosamente, por aquele momento? Sua mãe sempre dizia: “mulher que não casa não tem serventia nesse mundo”. Ela já beirava os trinta anos. Era jovem ainda ou já se tornara uma encalhada? “Tristes das mulheres que não encontram marido. Tornam-se noviças ou ficam para titia mesmo, dando trabalho aos parentes pelo resto da vida. Pobre sina essa que as mulheres de outrora temiam...” pensava Lívia, com suspiros prolongados, assim como os pensamentos. 

Pela janela da sala lúgubre, de paredes brancas e mobília gasta, a mulher de cabelos longos, pretos em contraste com a pele clara – quase transparente – observava as pessoas que passavam. Muitos iam solitários, seguindo a escuridão da noite. Outros passavam acompanhados, rindo a esmo, traçando planos compartilhados. E ela estava ali, com quase os seus trinta anos, sentada em uma cadeira de balanço e espiando a rua pela janela.

A vida passa depressa... Como, então, recusar um pedido de casamento? Mas as coisas estão tão mudadas... Será que o melhor não seria aproveitar a vida de solteira, saindo, rindo, dançando, conhecendo pessoas novas? Para isso, ela teria que ultrapassar aquelas paredes brancas e, pior que isso, esquecer os preceitos que a sua mãe fez questão de lhe ensinar, por toda a vida. Não, não. Isso é bobagem. Lívia sabia muito bem que a mulher, para ser mulher realmente, tem que ter casa, marido, casa cheia de filhos. Ela sabia que nascera para isso, porque, então, esses pensamentos agora? 

A brisa da noite penetrou com força, de repente, a janela da sala, interrompendo as divagações da mulher solitária. Os quadros pregados nas paredes levavam Lívia a imaginar a vida daquelas que foram as suas antepassadas. Teriam elas sofrido as mesmas aflições, quando tomadas pela proposta que todas as mulheres anseiam receber?  Ela nunca haveria de saber.

Namorado nunca tivera, apesar de ter feito certo sucesso com os garotos da Rua da Mangueira, onde viveu, praticamente, toda a infância e adolescência. Mas a timidez e as convenções sociais da mãe não permitiram que um “amor de verão”, ou um “amor para a vida toda”, surgisse. Por isso, ela não sabia como reagir num momento como este. O susto, o medo, a dúvida e a felicidade decidiram atuar em um só momento. As pernas tremeram, o coração disparou e as palavras decidiram fugir. Todas na mesma velocidade. Quer casar comigo? Sim, quero. É tudo o que eu quero. Tudo que eu sempre quis. Era isso que ela gostaria de ter dito, mas não podia, porque o momento era outro e as palavras fugiam incansavelmente e inalcançavelmente. 

O tempo passou e ela não percebeu. Era a hora de fechar a janela. Levantar da cadeira de balanço que, há muito tempo, tornara-se a sua única companheira nas noites intermináveis de ilusões. O vaivém da cadeira fazia-a viajar em situações, em momentos nunca vividos. Lívia tremeu, hesitou, emocionou-se. Mas não precisava responder ao pedido. Quer casar comigo? é uma frase que ela nunca teve a felicidade de ouvir. 

Na verdade, a proposta foi do mocinho para a mocinha da telenovela. Aquela, bem melodramática, que a solteirona não deixava de assistir. Se a mocinha respondeu sim ou não, Lívia não sabia. Ela estava a imaginar-se no seu lugar. Saiu da cadeira, fechou a janela e foi para a cama vazia, que nunca sentiu o calor noturno de uma alma masculina. 

Edilane Ferreira
Graduanda do 6º período de Jornalísmo em Multimeios da UNEB

sábado, 24 de setembro de 2011

A Santa


Já passara dos oitenta anos, embora aparentasse cinqüenta. A voz continuava a mesma de quando tinha seus vinte anos. Os cabelos, porém, já não eram os mesmos. O rosto também não. As mãos? Tão calejadas, que as crianças da rua já não pediam a bênção.

Dona Luzinha era mais conhecida como dona mocinha. Mocinha, porque a virgindade tão conservada, nunca fora tirada. No Bairro Alagadiço, um dos mais antigos da cidade de Caracas, dona Mocinha era considerada uma santa. Nunca se casou, embora possuísse todas as qualidades domésticas para um relacionamento matrimonial, e nunca se envolveu com nenhum homem. Não que ela tivesse relatado isso a algum vizinho, porém era isso que todo o bairro imaginava: ela é, sem dúvida, virgem.

Dona Mocinha ensinava as noivas do bairro como cozinhar bem, cuidar da casa, costurar. Apesar de nunca ter gerado um filho, era considerada mãe. Quem precisava de conselho, lá estava ela. Recebia o rico e o pobre, o limpo e o sujo com o mesmo sorriso radiante. Era como um padre que guardava até os mais bizarros segredos. Inúmeras estórias eram divididas com dona mocinha. Brigas matrimoniais, separações, amores impossíveis, traições, mentiras. Quem estava triste, logo ficava radiante. Quem estava nervoso, se acalmava ao ouvir sua voz serena. O vizinho, que sofria com as aflições de não ter trabalho, começava a crer na força de vontade e perseverança. O colo, o cafuné, poucas palavras eram suficientes para acalmar qualquer coração desolado.

Dona Mocinha, além de toda sua bondade e solidariedade, era considerada a mais católica de todas as mulheres do bairro. Todo o dia estava lá, de joelhos pedindo perdão, mesmo sem ter pecado. Pelo menos era o que seus admiradores imaginavam. Mulher de fé, moral inabalável. O céu a esperava. Só poderia ser esse o lugar de uma mulher seguidora dos bons costumes e que, em momento algum, se entregou aos pecados da carne. Santa dona Mocinha. Se o bairro Alagadiço pudesse, a canonizava.  Os brasileiros, então, teriam uma nova santa.

A fama de dona Mocinha era grande. Popularizou-se de um jeito que nem mesmo ela imaginara. Na verdade, ela nem premeditara. Ela virou a santa Mocinha sem fazer milagres. Era uma sexta-feira. Enquanto o Brasil vibrava com o programa do Chacrinha, dona Mocinha resolver folhear um livro. Passou toda a tarde tentando decifrar cada palavra. Isso não foi possível, mas as letras, ela reconhecia facilmente. Escureceu. E quando ela estava quase dentro de casa, escuta uns gritos. Era uma jovem depressiva que ameaçava se jogar do quinto andar. Só não se entregara à morte, porque dona Mocinha usou as palavras certas, o olhar encorajador e a voz tão doce, tão doce que a pobre garota cedeu aos seus encantos. Depois disso, dona Mocinha acompanhou todo o tratamento psicológico e a gravidez da garota. Tratava a menina como uma mãe, o garotinho como seu neto. Desde então, dona Mocinha passou a ser conhecida e adorada por todos da vizinhança.

Anos depois, quando pensava que a morte estava próxima, eis que um levantamento bibliográfico em Palafitas, cidade natal de dona Mocinha, surgiu para mudar toda a sua vida. Um grupo de estudantes da Universidade de Palafitas produziu um livro-reportagem intitulado “As quengas de Palafitas: o Bordel que fundou a cidade de Palafitas, no interior de Pernambuco.” A reconstrução da história dessa cidade foi tão polêmica que virou notícia de rádio, revistas, on-lines, jornais, TV’s. Até prêmios, os alunos ganharam com o tema. E uma das premiações foi a publicação da reportagem na revista “Cidades” que circula em todo o país. Circulou tanto que essa revista foi parar na banca da esquina da cidade de dona Mocinha.

Na capa, as prostitutas do cabaré das Palafitas. No interior da edição, a história da prostituta mais cobiçada do cabaré: “Lulu Desejo”. Lulu Desejo era linda. Olhos azuis, cabelos lisos e sedosos, a pele de cor de canela. Morena dos olhos azuis. Bastava os clientes fitarem os olhos que eram enfeitiçados. O destino: o quarto e 500 cruzeiros. Ela praticamente fundou o cabaré. Foi a primeira prostituta.

Menina do mato, passava fome e fora vendida pelos pais à senhora Zuleica, dona do Cabaré. Quando Zuleica chegou em Palafitas era só terreno e BR para vários lugares do país. Percebendo que muitos caminhoneiros ali paravam, ela resolveu fazer uma casa de repouso. Mas os caminhoneiros queriam sempre algo mais. Mulher, então, era o que mais desejavam. Zuleica, então, resolveu fazer o teste.

Disponibilizou a pequena Luzia. E num é que deu dinheiro. Como toda negociante, pensou longe. Comprou mais meninas. Algumas vinham até com as famílias que foram povoando Palafitas. Em um ano, a cidade já tinha muitos habitantes. A economia durante muito tempo foi movimentada pelo bordel. Era a menina da limpeza, o garçom, o porteiro, o Bar Man, o motorista, as prostitutas. O bordel virou cidade.

Na revista, o diário de Lulu Desejo. A integrante mais antiga havia fugido. Esqueceu de se proteger e engravidou do marido de dona Zuleica. Traiu a mulher que lhe dera a mão e ainda ia dar ao seu esposo o filho que ela não podia gerar. Como um cangaceiro pulou de cidade em cidade até encontrar alguém para fazer um aborto. Quando encontrou, entrou em profunda tristeza. Depois de conhecer uma senhora católica, que lhe acolheu, se arrependeu de tudo que fizera. Mas, já era tarde. Aquela linda garota, ao poucos, se tornou uma idosa também. Saias longas, blusas longas. O cabelo todo enrolado. Depois da morte da velha católica, partiu para a cidade de Caracas e foi morar no bairro Alagadiço. 

Viveu lá até ir à banca de revista e ver sua foto, em tempos de juventude, estampada na capa da revista. Mãos trêmulas, lágrimas a cair. O coração acelerou tanto que, quando parou, foi de vez. Sem nada falar, sem nada pedir, morreu a mulher mais ética, mais correta, a santa. Agora a única lembrança é a estátua em homenagem à santa Mocinha.

Michelle Laudilio
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

"Saudade sim, Tristeza não"




Era noite de domingo, nove de julho de 2001. Francisca Leandro estava em casa com o filho mais velho quando o telefone toca. Do outro lado da linha, recebeu a notícia mais dolorosa de sua vida: o filho caçula, Ubirleide Leandro, sofreu um acidente perto da cidade de Caxias e estava internado em estado grave.

Na verdade, Ubirleide já estava morto. Mas preferiram prepará-la antes de dar a informação triste.  Como dizer para uma mãe que seu filho, aos 21 anos e sete meses, no auge da juventude, não iria mais comer tomate e manga verde com sal, sentar com os amigos para tomar aquela cervejinha ou pular carnaval?Coisas que adorava fazer. Sem falar dos planos e projetos futuros interrompidos em fração de segundos.

Depois de resolver os trâmites legais, na terça-feira pela manhã o pai chega a casa da família com o corpo do filho. O clima no velório era de sobriedade. A alegria e as brincadeiras de Ubirleide já não existiam mais.  No rosto dos familiares e amigos, apenas sofrimento. Ao mesmo tempo, Francisca era confortada, a dor que percorria suas entranhas, era semelhante a que sentiu quando o colocou no mundo. “Senti dores, iguais as do parto”, declara ao tentar descrever o momento. 

Chega a hora do sepultamento. Talvez a mais difícil, pois é a despedida. Na volta pra casa Francisca, reuniu forças para terminar de preparar os rituais fúnebres. “Passei uma semana organizando lembrança e missa do sétimo dia”, lembra.

A morte prematura do filho trouxe uma reconfiguração do ambiente familiar e da rotina de Francisca. Assim como o filho mais novo e o marido, também dirigia caminhão. O trauma da perda a fez mudar a atividade profissional. Para suportar a saudade de Ubirleide, passou a ir diariamente ao cemitério. “No início levava flores, acendia velas, rezava e chorava muito no túmulo dele”, conta.


Seis meses depois do sepultamento, dona Francisquinha, como é carinhosamente chamada pelos coveiros, construiu o jazigo da família e transferiu os restos mortais do filho. No momento da transferência do tumulo para mausoléu abriu o caixão. O corpo de Ubirleide inerte parecia ter a mesma aparência de quando estava vivo, o que a emocionou profundamente. A partir daí, além das flores que costumava levar, passou a depositar no túmulo objetos que tinham significado para ele.

Anos depois, a rotina de dona Francisca é a mesma. O dia começa cedo no terminal de ônibus da cidade. Arruma as plantas e o tabuleiro de doces e queijos que serão comercializados no decorrer do dia. No final de tarde, vai com o marido para o cemitério visitar o túmulo do filho, ritual que já dura uma década. “Enquanto for viva, não deixo de ir lá”, comenta. A única vez que deixou de visitar o filho foi quando quebrou o pé e o marido estava viajando. Ela ainda assim queria ir ao cemitério, mas não havia quem a levasse.

Dona Francisa é uma mulher de poucas palavras, monossilábica. A força dela vem das adversidades.Todos os dias, por volta das cinco e meia da tarde, ela segue em sua caminhonete vermelha carregada de plantas para o cemitério. Enquanto seu Severino conversa com o coveiro, ela percorre os corredores estreitos do local, entre uma cova e outra, até localizar o túmulo do filho.

Ao chegar ao mausoléu da família, com fachada em mármore e portão metálico dourado forrado com tela, começa a arrumá-lo. À noite, uma porta também dourada típica de estabelecimentos comerciais é baixada para impedir furtos.  O ambiente é nostálgico. Uma tolha branca de linho cobre o túmulo. Nas laterais dois pufes que acompanham tapete e almofada. No quadro, a fotografia de Ubirleide vestido com um abada de carnaval. As prateleiras com objetos de decoração, vasos com arranjos de flores naturais e latinha de cerveja, refrigerante, frutas e um recipiente com sal de cozinha. “Essas coisas demonstram o que ele gostava”, diz dona Francisca sobre o sentido de trazer esses objetos para o cemitério.

O zelo ao jazigo, ao longo desses anos, foi a maneira que encontrou para lidar com a tristeza, a dor da perda. “É como se aqui fosse a casa dele. Penso que não morreu, apenas se mudou para outra cidade e um dia volta”, declara. Agora, ela pensa em reformar o jazigo. Tapete, toalha e jarros vão ser trocados para compor a nova decoração que será azul. Cada objeto exposto revela o amor e cuidado em preservar a memória do filho. “onde ele estiver vai ver o carinho que sinto por ele”, conta.

A preocupação de dona Francisca é que o túmulo de Ubirleide não fique abandonado quando vier a faltar, por isso já avisou a família que quer ser enterrada em sua terra Juazeiro do Norte e os restos mortais do filho devem ser transferidos e colocados no mesmo mausoléu com os dela. “Quero que fique junto de mim”, declara. Ela acredita que a morte traz tristeza e Deus não quer tristeza. "Saudade, sim... tristeza, não".

Por Josélia Moraes (texto e foto) e Paloma Aimée (texto)

domingo, 18 de setembro de 2011

“Eu amo você demais”



Caminhamos rumo a sua casa, um dos celulares toca, conversa durante todo o percurso e, com a outra mão, lê mensagens que também chega do outro celular. No itinerário até sua residência, ele conversa com todos que encontra, um sobrinho, o guarda do posto de saúde, os estudantes que vão à escola. Assim é Cleuton César Ferreira, mais conhecido como Kekê, 33 anos, dos quais 26 anos no meio artístico.
Vascaíno de coração e apaixonado por suas obras, Kekê é hiperativo, levanta as mãos e a cabeça quando fala, balança muito as pernas e sempre dispara a célebre frase “eu amo você demais”, para aqueles indivíduos dispostos a ouvi-lo ou que tenha algum grau de intimidade.
Pai de três filhos, um adolescente de 12 anos, uma menina de seis e uma criança de dois, a quem ele chama de dinossauro. Keké avisa que é uma forma carinhosa de chamar o filho, por causa da cabeça achatada. Coisas de artista. A excentricidade é comprovada na chegada a sua casa, quando alegremente seu filho vem recebê-lo no portão.
Natural de Curaçá, Kekê foi influenciado no meio artístico pelos amigos Pinzoh, Dodó, Nego, Clóvis, Gatinha. Todos eles personalidades curaçaenses nas palavras do próprio.
Kekê pinta, e pinta muito. Em tela, em madeira, em CD´s, em telhas. Uma de suas características é fazer alguma obra, geralmente uma tela de artistas consagrados ou regionais, e levá-la aos shows. “É um tiro no escuro, levo as telas e lá vejo o que vai acontecer, um episódio marcante foi o show do Capital Inicial, onde Dinho Ouro Preto me convidou para subir ao palco”, pontua, em êxtase.
A data ele se lembra bem, era quatro de fevereiro de 2011. Segundo Kekê, este foi o maior reconhecimento que um artista de renome nacional já lhe concedeu. Recentemente, foi ao show de Maria Gadú, também ocorrido em Petrolina, lá embolsou R$ 950,00 por quatro telas vendidas a cantora. Foi o maior valor pago ao artista pelas suas obras.
Porém, o que lhe trouxe maior satisfação foi a criação, em meados de 1994/1995, do Movimento Bichos Escrotos, junto com Maurizio Bin, também curaçaense. O movimento propunha envolver cultura, arte, música, dança, e que posteriormente tornou-se uma Banda de Rock, em plena atividade atualmente.
Sobre seus processos de criação, Kekê é pontual. “Minha arte é meio grafite, meio pincel, meio arte estêncil, meu estilo é próprio”. Calçado em um tênis estilo allstar, calça jeans, e camisa preta personalizada por ele mesmo, Keké tem todo um estilo próprio, é simples, mas nada modesto. Como artista, ele quer ser reconhecido e é. Já participou dos programas Mosaico Baiano e Bahia Esporte, da TV Bahia, do Globo Esporte nacional e nas Tvs e jornais locais.
“Eu gosto de levar a tela para o show e deixar que a galera toque, sinta, pegue nela, a energia da tela aumenta”, diz um Kekê entusiasmado, alegre e vibrante.
Um vizinho chega, começam a conversar sobre problemas no encanamento da casa de Kekê e eu me despeço de Clécia Maria, sua esposa, dos dois filhos do casal, e dele, o artista que pinta telas e contagia todo aquele que se aproxima e conversa com ele.
Juliano Ferreira (texto)
Graduando do 4° Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB
Catharine Matos (foto)
Graduanda do 6º Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Nas órbitas de Ângelo Roncalli


“Hiato. Poeta inexato. Náufrago. Bárbaro. Sempre mudando”. É com essa linguagem polissêmica, conotativa, que Ângelo Roncalli se define. Mas não poderia ser diferente. Que melhor forma um poeta poderia encontrar para falar de si, senão fazendo uso da própria poesia? Para esse concretista, a autodefinição não pode fugir do cosmo, ou melhor, das órbitas. Como diz Luiz Hélio Alves, Roncalli busca o “totalismo” para descrever a sua poesia, e eu, com a permissão da palavra, digo que ele busca o “totalismo” para descrever a si próprio.
Juazeirense desde quando nasceu, no primeiro dia de abril de 1976, ele não é um mentiroso. É, antes, um fingidor, já que “finge tão completamente que chega a sentir que é dor, a dor que deveras sente”, como já dizia o poeta português, Fernando Pessoa. Ângelo podia ser qualquer Ângelo, mas não é. Ele é Roncalli, assim como o Papa João XXIII, que se chamava Ângelo Giuseppe Roncalli. Mas a sua avó, que foi quem lhe deu esse nome, decidiu abrir mão do Giuseppe. Só Ângelo Roncalli estava bom. Segundo o poeta, ela fez isso porque era muito católica. “Batizou-me com o nome de Papa e mudou minha vida”, diz. E deve ter mudado mesmo, afinal não é para qualquer um carregar o nome de um Papa.   
A relação de Roncalli com a poesia começou em casa, ao som de João Gilberto, dos Novos Baianos e de Caetano Veloso. Sem esquecer de Legião Urbana e dos Titãs. “A música foi minha porta de entrada para a poesia”, relembra o artista. As suas influências foram a poesia concreta e a poesia beatnik americana, poetas como Arthur Rimbaud entre outros.
Ao ser questionado sobre a crença na inspiração ou no trabalho árduo da palavra, como defendia João Cabral de Melo Neto, Roncalli é incisivo: “não há limites para a poesia. Escrever pode ser um processo conclusivo ou obsessivo. Depende de quem escreve”. A sua produção não fica engavetada, nasce de uma vez, “no viés”, como ele mesmo diz. Para Roncalli, é poesia tudo que ela escolha poetar. E a dele opta por poetar a convivência, o despudor e a metapoesia. Talvez por essa razão, Josemar Martins (Pinzoh), que também é poeta, classifique a literatura de Roncalli como “universal”. Não é à toa que o seu primeiro e único livro publicado - até o momento – chame-se “Orbitais – um ato de novas conquistas”. 
Seja por escolha, destino ou coincidência, Ângelo Roncalli, que também é Bacharel em Ciências Contábeis, dirige a empresa Orbitais Negócios Integrados, nome emprestado do livro, justamente pela cosmogonia, pelo totalismo que ele representa. Embora sendo um profissional liberal, a poesia ocupa um lugar singular em sua vida. “Escrevo porque é minha forma de expressar minhas observações sobre nosso cotidiano e sobre o próprio ato de escrever. Escrevo porque sou um existencialista romântico, que ainda acredita num mundo civilizado”, explica Roncalli, afirmando que a arte poética é o próprio “brinde da existência”.
Na criação do poeta não há segredos. “É sempre um processo perceptivo. Um mote poético. Captado através do cotidiano. Depois paro e escrevo o poema”, conta. Em meio a tantas tecnologias como a poesia é produzida? Ainda com a caneta e o papel ou com os meios eletrônicos? Roncalli não poderia dar melhor resposta: “Caneta e Papel. Computador e Word. Hidrocor e papel. Além de paredes, guardanapos, outdoor, camisa. Meu sonho é reconstruir o cais com poemas referenciais”. Quem duvida disso? 
Edilane Ferreira (texto).
Foto - Divulgação
Graduanda do 6° Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Para sempre bailarina



Era uma manhã ensolarada em Petrolina (PE). Com papel, caneta, gravador e câmara fotogáfica em mãos,  chegamos ao nosso destino às 11h. Sentamos e esperamos por alguns minutos. Vestida com as indumentárias essenciais para a sua profissão, meias, sapatilhas nos pés e um colan, a mulher, de estatura baixa e sorriso aberto, nos recebeu com muita simpatia e começamos um descontraído bate-papo.

Vildete Matins Cezar Cabral nasceu na cidade de Cruz Alta (RS) e se apaixonou pela arte desde a sua infância. Cresceu rodeada por entre as telas de seu pai e a música que embalava os passos de dança da mãe e da irmã, Valdete. Conterrânea do escritor Érico Veríssimo, a menina curiosa logo despertou o interesse pela dança aos oito anos de idade quando passou a assistir às aulas da irmã, e aos 13 já dava aulas de ballet sem pretensão de se tornar profissional. Aos 15 anos, realizou seu primeiro solo e coordenou o primeiro festival de dança.

O tempo passou e a menina decidiu levar a dança como profissão. A princípio, o sonho de ser bailarina começou ao cursar Belas Artes na Faculdade Federal de Santa Maria, aos 16 anos, em 1973. No entanto, precisou se transferir para a Universidade de Brasília quando seu pai, militar, foi transferido com toda a família para Petrolina, e na região não existia o curso. Morando na capital do país, a jovem esbanjava talento e conseguia elogios de seus mestres.

A partir daí nunca mais parou. Começou a dar aula de ballet para filhos de diplomatas, participou de cursos no Rio de Janeiro e concentrou os seus estudos no que mais gostava: o ballet clássico. Sonhava ganhar uma bolsa para estudar no exterior. Porém, por motivos profissionais, optou por voltar à sua cidade natal para concluir o curso que, até então, não havia terminado. Foi aí que, no último período de faculdade, por intervenção divina ou um incidente da vida, no final do ano de 1978, um telefonema mudou a direção de seus planos. Sua irmã fora assassinada com cinco tiros pelo marido, o que a fez arrumar as malas e partir para Petrolina.

Com o intuito de ajudar a mãe que estava inconformada e depressiva com a morte da filha, a futura bailarina chegou à região do Vale do São Francisco com a intenção de pôr em prática um sonho da irmã, abrir uma escola de ballet e compartilhar o talento possuído por ambas. Anos depois, por motivos pessoais, a família decidiu voltar para o Rio Grande do Sul, porém Vildete decidiu ficar. E assim aconteceu.

Em 1980, obedecendo à condição de seu pai - fazer um curso superior - para ficar em terra sãofranciscana, Vildete se formou em administração pela Faculdade de Ciências Aplicadas de Petrolina (FACAPE), já que não havia curso de  Artes. Mas o sonho de investir na arte do ballet continuava. Assim, dois anos depois, nomeou a escola fundada pela irmã de Escola de Ballet Valdete de Cezar, uma forma de homenagear a irmã.

Entre uma onomatopeia e outra para contar todos esses anos de experiência, aprendizado e viagens por diversos países e estados no Brasil, Vildete possui uma bagagem extensa de prática e conhecimento, e se orgulha de já ter sido a única representante nordestina de sua modalidade no exterior. Além de trabalhar com crianças carentes e autistas, “o que proporcionou uma vida melhor para essas pessoas”, conta.

Hoje, aos 54 anos, casada e com uma filha, uma das pioneiras da dança no Vale do São Francisco se considera uma pessoa feliz e realizada profissionalmente. Entretanto, gostaria que a sua escolha por ensinar fosse mais valorizada e explorada tanto na região quanto no país. “Apesar de amar o que faço, às vezes fico desestimulada com a nossa realidade e tenho que trabalhar com as frustrações. O brasileiro ainda não consegue entender os benefícios que o ballet traz e acaba deixando-o de lado. Mas, acredito que isso ainda possa mudar”, desabafa.

Acreditando na educação através da arte, fez pós-graduação em psicopedagogia como forma de ajudar suas alunas. "A dança mexe com a sensibilidade das pessoas e muitos a tem como refúgio", comenta. Apesar de não ter conquistado o sonho de se graduar como bailarina pela universidade, quando indagada sobre o que seria de sua vida se não existisse a dança, Vildete é sucinta. “Se não tivesse a dança, eu não teria conseguido chegar até aqui. A minha vida seria simplesmente vazia. Eu não seria nada”.

Catharine Matos (texto e foto)
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

sábado, 17 de setembro de 2011

Os caminhos de Juazeiro



Habitualmente no percurso entre o Country e o terminal de ônibus de Juazeiro não me surpreendo mais com o que vejo, me deparo com a mesma Juazeiro de todos os dias. Entretanto, hoje, perante os seus 133 anos, entorpeço o meu olhar para poder enxergá-la. Talvez, desta forma, entenderei porque nossas retinas deixaram de olhá-la de modo apaixonado, porque ela está assim, pálida e desinteressante.

Adentrando o ônibus, questiono-me: como poderei vê-la? Logo, concluo que preciso primeiramente desconhecê-la, para posteriormente, cara a cara, lhe encontrar e identificar a origem da sua falta de nitidez. Ao passar pela catraca do coletivo, deixo todas as minhas impressões para trás. No fundo do ônibus encontro um assento adjunto à janela. A partir daquela fresta, começo a investigar.

O passo acelerado das pessoas, ambulantes à beira da calçada, a velha pedinte sentada no banco. São as primeiras imagens que, através da janela, identifico. Com o ronco do motor desvio meu olhar, o veiculo está lotado, algumas pessoas conversam entre si, outras consultam fixamente seus relógios, duas lêem e, estranhamente, encontro-me só, olhando os caminhos de juazeiro.

Após o ônibus partir, o cenário se modifica.  Surge um semáforo, um posto de gasolina, pessoas e carros, mas, repentinamente, fico incomodada, sinto um odor, também ouço muito barulho. Curiosa, encosto a cabeça na janela, aperto os olhos para ver a algazarra,  ainda distante, enxergo apenas pessoas. Aproximando do local mato a charada, são ambulantes, ou, como está escrito na placa enferrujada afixada na parede, trata-se do Mercado Joca de Souza Oliveira. O ambiente é tumultuado, uma compilação do som alto dos carrinhos de venda de CDs e DVDs pirata aliada ao berreiro dos vendedores e o aroma indesejável de animais e frutas podres.

Volto-me para os passageiros a bordo, reconheço nos seus olhares certa repugnância ao Mercado, suponho que seja pelo seu aroma fétido ou talvez pela desordem do local. Confesso que, pela primeira vez naquela viagem, partilhei do mesmo sentimento dos passageiros, não havia naquilo nada encantador e nada que pudéssemos nos orgulhar. 

Minutos depois, vejo na poltrona da frente duas jovens que conversam sobre a beleza do pôr do sol na Lagoa de Calu e como o lugar é agradável. Fiquei atenta a vista, aquela Juazeiro traria à tona mais uma das suas faces. Após o contorno, avisto um céu azul, algumas árvores e uma estrutura rústica de madeira que trazia na sua fachada o nome Alpendre. Adiante, lá estavam as águas da lagoa com patinhos a se refrescar, uma quadra de esportes onde meninos corriam alegremente atrás de uma bola e uma via na qual pessoas caminham, correm e conversam tranquilamente. Surpreendo-me com aquele cenário, um ambiente de paz, que acende em mim a vontade de seguir explorando Juazeiro.

Saindo da lagoa, o ônibus segue em direção a uma avenida larga. Aguço meu olhar. Uma senhora de vestido rosa sentada atrás de mim fica admirada com a minha curiosidade e pergunta: Você é de onde? Surgiu, no meu semblante, um leve sorriso:  sou dessa cidade, mas há muito não a olhava como hoje. Para a senhora, a resposta não causa espanto, ela então relembra de como tudo era no passado: "Tenho 75 anos, não gosto mais daqui. Quando eu era jovem isto era o Cais, um movimentado centro comercial no qual embarcações atracavam e desembarcavam com mantimentos e os mais diversos produtos da região. Nesta época, as pessoas se olhavam, se reconheciam, tinham apreço ou então respeito. Hoje, tudo está tão diferente. Aqui agora é a orla, que para mim não passa de um ponto de farras e prostituição'". Indignada, a senhora continua: acabaram com tudo que havia e construíram a praça São Tiago Maior e a estátua do Nego d água pensando que assim trariam a beleza de outrora. Mas isso não aconteceu, nem vai. 

Escutei toda a fala da senhorinha, e realmente tive que concordar com ela, os juazeirenses tinham uma paisagem linda aos seus pés, mas, apáticos, deixaram o cais se tornar isso, uma orla, repleta de bares e  pessoas alegres que dançam, nas calçadas, baladas. Outras se divertem reencontrando amigos.

Quase impossível não me comover com o saudosismo desses cidadãos juazeirenses que choram à antiga Juazeiro, mas prefiro pensar também que a modernidade não trouxe apenas frustrações. A cidade provou o doce sabor de ser considerado um dos pólos da fruticultura irrigada e desde 2002, pólo universitário, com a chegada de mais uma universidade. Prefiro pensar dessa forma. Contudo, não consigo deixar de ecoar no meu íntimo o sentimento de perda que vi nos olhos da senhora.

Passada a decepcionante experiência após as reflexões da senhora me fechei em mim mesma. O percurso estava no fim, o ônibus estava subindo a rampa em direção à Petrolina. Na ponte me senti novamente em paz, em cima daquela imensidão de águas. Chegando a cidade vizinha, o ônibus para 15 minutos no semáforo, um rapaz vira para o outro e diz: “aqui tudo é diferente, as pessoas respeitam os sinais de trânsito, preservam a cidade”. 

A partir dessa fala e todas as experiências vividas pude então compreender: Juazeiro não era igual a Petrolina, não era como já foi antes. As pessoas não a enxergavam por um motivo, porque ela não era, sim, a mais admirável Juazeiro.

Juliane Peixinho (texto)
Graduanda do 8º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Emerson Rocha (foto)
Graduando do 8º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Crenças, verduras e trabalho no Mercado Joca de Souza Oliveira




“Olha a banana, aê! É só um R$ 1,50. Chega aqui, freguês!Na barraca tem pimentão, cebolinha, moi de verdura. Leve vá, só por R$ 1,00”. Todos os dias, a mesma gritaria. Todos os dias, antes  mesmo do sol nascer, dona Maria se joga na porta do mercado Joca de Souza de Oliveira. E se joga mesmo!É só olhar para o chão sujo da rua, para a cor dos seus pés e unhas. Ela quase se confunde com o meio fio.

Quem olha para baixo, procurando aquela voz rimada vê uma senhora de saia, lenço na cabeça, sentada ao chão e as mãos tão acostumadas a descascar o feijão que nem olha para bacia. Ela se comunica de todas as formas. Ao tempo que ela chama o freguês, o movimento dos dedos enche o saco de feijão e mostra as suas mãos calejadas e acostumadas à labuta. Ao tempo que ela grita, seus olhos falam. Mas nem todos enxergam o olhar de dona Maria, nem todos conseguem ver além de uma senhora jogada na calçada interrompendo o trânsito.
A feirante é invisível na Rua Oscar Ribeiro. Mesmo tão larga, mesmo com a rua sempre mostrando quem está ali, quem passa de carro anda como se fosse um pedestre. Velocidade controlada, olhos atentos ao vai e vem de pessoas atravessando sem temer aos automóveis. Se vacilar, kabum! O carro pode bater em uma das bancas de laranja que dividem a rua com o trânsito.
O motorista sempre olhará para o mercado. É sempre necessário se desviar dele. O mercado também está na rua. E a pessoa que passa precisa dividir com dona Maria as calçadas da Oscar Ribeiro. Desde os dozes anos, dona Maria ganha o pão de cada dia, no início na companhia da mãe que vendia no antigo mercado. Assim como os irmãos, dona Maria aprendeu a vender as verdurinhas que alimentou os cinco filhos que tivera e que hoje seguem profissões diferentes da mãe. Um é policial, outro professor e três estão estudando. Dona Maria é uma batalhadora. Mas dificilmente essa qualidade ficará visível aos olhos de quem passa. E se reconhecer o exterior do  mercado é difícil, imaginemos o interior.

Do lado de dentro há outra dona Maria. E, ainda, vários “seu Zé”. Tem dona Maria do queijo, seu Zé do artesanato; tem dona Maria do restaurante, seu Zé das verduras; tem dona Maria da roupa, tem seu Zé do toicinho; tem dona Maria do mocotó, tem seu Zé do Restaurante; tem Dona Maria das frutas, tem seu Zé do Peixe. Cada Zé e cada dona Maria dizem muito sobre o mercado.
José Carlos da Silva, o Zé do Peixe, diz muito sobre o que é o mercado. São trinta anos provendo o seu sustento dali. Os pés inchados, o fácil manejo do facão. Sangue é uma das cores que compõe a sua roupa que era branca, mas de tanta escama virou estampada. 
Quem olha para seu Zé vê um vovô simpático. Com o sorriso sempre aberto, ele sempre dá boas vindas a quem chega ao mercado.  Assim como todo vendedor do mercado, a lábia é a sua principal fonte de renda. Isso porque não é o peixe que “se vende”, são as histórias do pescador que vendem o peixe, geralmente histórias de pescadores e da região. E não precisa perguntar, basta apenas dizer: “quanto tá o peixe?”. Isso é suficiente para você, encantado com todas as lorotas, esquecer até o valor do peixe.
Seu Zé vende todo tipo de peixe, mas como uma bula de remédio sempre indica algumas contra indicações. Com o sotaque bem carregado, quase cantando questiona:
- E você é solteiro(a)?
Ele repete essa pergunta toda vez que alguém procura pelo peixe “caboje”. Isso porque seu Zé não quer causar problemas matrimoniais. Segundo ele, o “caboje” tem poder afrodisíaco.
- Quando você coloca o primeiro pedaço na boca, na mesa mesmo, você já sente “umas coisa estranha”, uns rabichos, uma vontade de...
- Mas é verdade seu Zé?, pergunta a freguesa.
- Oxe, tô dizendo menina. Cê tá pensando que tenho 29 filhos com sessenta e cinco anos de que jeito?
- E o senhor tem 29 filhos?
- A última tem seis meses. Uma princesinha. Quando crescer vai trabalhar aqui.
E como cada ser em si carrega uma crença. O caboje desperta a curiosidade, mexe com a fé, vamos levar, né?
Assim como seu Zé do peixe, dona Maria dos remédios vende pela crença. Em sua banca tem remédio pra tudo. São ervas medicinais, sementes, pó, sal grosso, óleos. E ela não só vende, ensina como preparar cada medicamento.
- O que a senhora mais vende?
- Sal grosso. Quem não quer afastar mal olhado?
- E a senhora já tomou banho de sal grosso?
- Claro, minha filha. Tenho 20 anos de mercado. Trabalho nisso desde quando trabalhava no antigo mercado, que ficava no Cais. Então, não posso deixar de proteger minha barraquinha. Toda semana jogo o sal grosso. E quase todo dia tomo banho carregado.
-  E funciona?
- Claro, o sal puxa “as coisa negativa”.

O  mercado Joca de Souza tem disso também. Não é só de barulho, de verduras e frutas que se ganha a vida. No mercado até crenças são vendidas. A fé é um grande álibi. O ambiente é assim, um infinito particular que se sobressai ao óbvio. Basta olharmos as donas Marias e seus Zés, porque cada um deles conta um pouco de nós.

Michelle Laudílio (texto)
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Amanda Franco (foto)
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

De Juazeiro a Petrolina, a Juazeiro...



Passam cerca de 35 mil pessoas diariamente na ponte presidente Dutra, que interliga as cidades de Petrolina e Juazeiro. Apesar de ter nascido em Juazeiro e ser de família baiana não tenho nenhuma familiaridade com a cidade. Na minha rotina diária de sair de Petrolina, atravessar a ponte com uma belíssima imagem do Rio São Francisco, passar em frente à lagoa do Calú, por alguns quebra-molas e chegar à faculdade, é o único conhecimento que eu tenho da minha cidade natal. Mas essa desatenção não é só minha, uma grande parte dos petrolinenses se encaminha a Juazeiro todos os dias para ir a alguma clinica, algum mercado, ou loja. A cidade - em si - lhes passa despercebida.

O hábito de ir sempre à cidade - exceto por obrigação ou necessidade - não acontece. É só experimentar perguntar “O que você acha de Juazeiro?” a alguém de Petrolina, que a resposta quase sempre é imediata e negativa: “Péssima”, “Desestruturada”, “Um caos”, ”De bom só a visão de Petrolina”. A diferença estrutural é o primeiro impacto entre as cidades. Ao chegar a Juazeiro temos a impressão de que estamos realmente no interior, ruas estreitas, prédios baixos, muitas pessoas andando na avenida, praças, bicicletas, casas antigas, motos, carrinhos de bebês, tudo misturado. Mas, porque essa negação da cidade co-irmã? Só pelas ruas estreitas e fachadas envelhecidas? O ar de Juazeiro seria diferente?

Um dia me peguei respirando profundamente para ver se a diferença estava no “ar”, e foi quando vi um outdoor escrito: “a maior loja do Brasil da Honda está em Petrolina”. Por um minuto, esqueci onde estava, e até os anúncios favoreciam Petrolina. O ar era baiano, mas a impressão era de que o rio separou uma única cidade. Nossa necessidade de defender nosso habitat é o responsável por essas visões deturpadas de algo desconhecido. Para entender Juazeiro é necessário ver sua geografia, entender a diferença na construção das duas cidades, e compreender que os becos e ruas estreitas contam uma história de mais de 130 anos, refletindo a diferença nos processos econômicos e históricos das duas. Devemos lembrar que estamos a 10 minutos de Juazeiro e não há 10 anos, passear na cidade e conhecer seus espaços é possível. Prestar atenção ao sorriso e ao jeito “tagarela” dos juazeirenses fará toda a diferença.

Lícia Loltran
Graduanda do 2º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB
Foto: Filipe Durando

E as lavadeiras do Angari?


Tristes “Angarys”, tristes “Angarys”, como já dizia o poeta Euvaldo Macedo, não te encontramos mais por aqui. O rio São Francisco não é mais banhado pelas águas “ensaboadas” das roupas das lavadeiras. Cadê as “mulheres sofridas de peles curtidas, de sonhos clementes” das canções de Edésio Santos? Aah, lavadeiras do Angari... As tuas mágoas não são mais lavadas por essas águas. Onde elas vertem agora? Onde está o vaivém dos teus braços, o balanço das roupas que te sustentam?

Enquanto uma mulher carrega bacias cobertas de roupas na cabeça, um poeta a contempla. Pura poesia! As cordas do violão de Edésio não seguem mais o compasso das tuas mãos entregues a panos e águas. Ele se foi... E vocês, onde estão, mulatas cachopas? Cansaram de bater roupas? Ou seguiram o poeta? Não vejo mais o brilho e a brancura das tuas almas ingênuas, puras e simples como Edésio dizia. 

Recorro ao Chronos para tentar encontrar as mulheres que outrora estiveram presentes nas poesias e canções juazeirenses. Aquelas que refletiam a alma da gente que pisa os solos ribeirinhos. É preciso recorrer ao Senhor do Tempo para encontrá-las, pois entre as casas coloridas, conglomeradas de hoje, vejo apenas canoas “beirandeiras” solitárias. Onde estão vocês, mulheres de pescadores, que só encontro agora nas canções de Edésio? O Angari não é mais o mesmo. Falta o gingado dos teus corpos com trouxas na cabeça e sonhos nas mãos. Nos varais não vemos mais o “amor por tantos sonhos”. Não sabemos onde eles foram pendurados. O rio segue o seu percurso, a ponte está no mesmo lugar, os pescadores pescam à noite, talvez agora sem medo do Nego D`água. Só as lavadeiras não estão.

Hoje, vejo meninos correndo, homens conversando, pessoas passando, mulheres indo e vindo, não mais com roupas nas cabeças. Agora elas estão em peixarias, nos balcões de bares e mercadinhos. Não são as mesmas das canções de Edésio. Elas mudaram, as músicas mudaram, a cidade mudou. O Angari dos poetas não existe mais. Os vapores se foram, ninguém os espera. Alguém ainda faz versos ao arrebol, ou isso ficou entre Edésio e João Gilberto, junto ao cais? Se ainda existem esses raros, meus olhos saudosistas não o veem. Edésio olhou Juazeiro com os olhos de poeta que o comprazia. Ele viu a beleza, a poesia, a ternura, a ponte imensa sobre o rio, as velas brancas canoeiros e barqueiros e, junto a tudo isso, as lavadeiras, as lavadeiras do Angari.   

Onde encontrá-las? Vou ao Angari, ele não é mais o mesmo. Não as encontro, não as vejo conforme a lírica de Edésio. E, imersa em recordações poéticas, desconheço o lugar em que piso. Sem eira nem beira, vou beirando às margens do rio. E de muito longe me vem uma música que diz, justamente, o que eu gostaria de ter dito. Não sei quem a compôs, mas, mesmo assim, não consigo deixar de lembrá-la. Vou seguindo e cantando a canção, que emerge do mais íntimo das minhas dores: As lavadeiras do Angari / Já não se encontram mais por aqui / As lavadeiras do Angari / Já não se encontram mais por aqui / As lavadeiras do Angari / Já não se encontram mais por aqui / Amigo tudo isso acabou / E o tom já não é o mesmo ao arrebol / Ficou somente a história / Daquele tempo bom...

Veja: Canções que retratam o Angari

Edilane Ferreira da Silva
Graduanda do 6º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Canções que retratam o Angari

AS LAVADEIRAS DO ANGARY
 (Edésio Santos e Jota Mildes)
Quanta beleza e poesia
Quanta ternura existe aqui
A ponte imensa sobre o rio
Velas brancas canoeiros e barqueiros
E as lavadeiras
E as lavadeiras do Angari
As lavadeiras do Angari
E as lavadeiras do Angari
E as lavadeiras do Angari
Mulatas cachopas
Batendo roupas
Tanto brilho e brancura
Tem a alma ingênua
Simples e pura de nossa gente
São lavadeiras do Angari
São lavadeiras do Angari
São lavadeiras do Angari
São lavadeiras do Angari
Mulheres sofridas de peles curtidas
De sonhos clementes
Mulheres que sabem
Descobrem, entendem
Quantas mágoas são lavadas
Nessas águas
Nos varais quanto amor por tantos sonhos
Nos varais quanto amor por tantos sonhos



HOMENAGEM
(Compositor desconhecido)


Edésio me permita essa canção
É a pura expressão do coração
Recordo aquele tempo
Aquele tempo bom
Fazia sol
E o meu canto maior era em dó
Edésio companheiro de ilusões
Você me revelava o sol
Muitas paixões
Lembro ainda menino
Buscando sensações
No violão tocava as mais lindas canções
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
Vapores atracando junto ao cais
Você fazendo versos ao arrebol
Versos tão bonitos
Você e João a sós
Cantavam sua gente, o rio e o por do sol
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui   
Amigo tudo isso acabou
E o tom já não é o mesmo ao arrebol
Ficou somente a história
Daquele tempo bom
E a pura melodia
No mesmo tom maior
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
Vapores atracando junto ao cais
Você fazendo versos ao arrebol
Versos tão bonitos
Você e João a sós
Cantavam sua gente, o rio e o por do sol
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
Amigo tudo isso acabou
E o tom já não é o mesmo ao arrebol
Ficou somente a história
Daquele tempo bom
E a pura melodia
No mesmo tom maior
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui
As lavadeiras do Angari
Já não se encontram mais por aqui

A arte de narrar histórias

Desde os tempos remotos, o homem necessita de narrativas, necessita contar a outro o que lhe sucedeu, esmiuçando em detalhes como aconteceu, e procurando encontrar respostas para entender o que acontece ao seu redor. Nessas narrativas, muitas vezes a imaginação se confunde com o real, a história ganha contornos ficcionais ou apela para o imaginário, a sensibilidade e a estética. Nasce o escritor. Nem verdade nem mentira, apenas efeitos estéticos para criar uma trama, uma história que fale sobre nós e nos identifique.

Em outras ocasiões, procuramos narrar acontecimentos reais, fatos ocorridos, o presente se sucedendo em cenários reais, embora algumas vezes o real nos pareçe extraordinário. Nessas narrativas, procuramos retirar véus que encobrem a realidade, procuramos desnudar o real para que um público determinado acompanhe a cena como se estivesse vivenciando-a.

As cenas falam de acontecimentos comuns no cotidiano,mas que irromperam na esfera local como uma novidade, algo que não se esperava que acontecesse e se sucede como uma novidade, uma notícia. Há outros acontecimentos que se sucedem de forma tão veloz que perde o caráter de novidade e ai precisamos retirar  - ainda mais - os véus que encobrem o real, precisamos compreender os impactos atuais e prospectar tendências.

Deixamos de apenas narrar um acontecimento para dar um testemunho, passamos de simples narradores a jornalistas, cuja identidade é mais do que uma mera função social de reportar acontecimentos. Jornalistas são intelectuais com um saber próprio, com um domínio de uma técnica -  a de narrar acontecimentos que se sucedem na atualidade, buscando as suas conexões e impactos – e são responsáveis por criações culturais, seja o produto jornal, televisão, o rádio, o blog, o site, entre outros suportes para veiculação de suas narrativas sobre o real.

A esfera da cultura é uma das dimensões do fazer jornalístico. Ao trazer à luz acontecimentos reais que não são perceptíveis por todos, ao selecionar aspectos dessa realidade, ao interagir com fontes,  ao recriar fatos ou ao torná-los uma criação repetitiva, pois a repetição tem sido cada vez mais atual no mundo em que lemos tantas notícias, o jornalista opera com uma criação cultural, que se destina para a esfera social e para um público consumidor. 

Essa criação cultural se alicerça em fatos reais, com operadores que buscam apurar o que se vê,  comprovar os fatos, juntar as diversas versões e trazer uma da dada realidade ao leitor. Nessa busca, o jornalista deve ser um repórter nato, aquele que viaja, olha, conversa e escuta, como fazia o historiador Heródoto, um dos primeiros repórteres a desvendar o mundo antigo há mais de 2.500 anos.  Nas suas viagens pelo mundo antigo, Heródoto procura conhecer, compreender e descrever o que ele vê. 

Podemos procurar outras explicações para justificar o jornalismo como essencial à contemporaneidade, mas as competências do buscar, do ver, ouvir, compreender e nos oferecer histórias são inerentes a quem deseja ser jornalista. E foram para cumprir esses atributos do fazer reportagem que nasceram algumas das criações jornalísticas narradas nesse blog. São aventuras na reportagem crônica, no conto e no perfil, possibilidades de entrelaçar o jornalismo com a literatura.

Foi uma aventura em busca de histórias singulares a partir do nosso locus – a nossa cidade. Para conhecê-las, basta ler e comentar. Claro, todo jornalista precisa de um leitor e precisa ser lido, a informação precisa circular. Ops! Aí, já adentramos em  uma outra dimensão da cultura do jornalismo atual. Por ora, aprecie o que oferecemos em doses homeopáticas de narrativas sobre o real.

Andréa Cristiana Santos 
Jornalista e Prof. do DCH III