sábado, 24 de setembro de 2011

A Santa


Já passara dos oitenta anos, embora aparentasse cinqüenta. A voz continuava a mesma de quando tinha seus vinte anos. Os cabelos, porém, já não eram os mesmos. O rosto também não. As mãos? Tão calejadas, que as crianças da rua já não pediam a bênção.

Dona Luzinha era mais conhecida como dona mocinha. Mocinha, porque a virgindade tão conservada, nunca fora tirada. No Bairro Alagadiço, um dos mais antigos da cidade de Caracas, dona Mocinha era considerada uma santa. Nunca se casou, embora possuísse todas as qualidades domésticas para um relacionamento matrimonial, e nunca se envolveu com nenhum homem. Não que ela tivesse relatado isso a algum vizinho, porém era isso que todo o bairro imaginava: ela é, sem dúvida, virgem.

Dona Mocinha ensinava as noivas do bairro como cozinhar bem, cuidar da casa, costurar. Apesar de nunca ter gerado um filho, era considerada mãe. Quem precisava de conselho, lá estava ela. Recebia o rico e o pobre, o limpo e o sujo com o mesmo sorriso radiante. Era como um padre que guardava até os mais bizarros segredos. Inúmeras estórias eram divididas com dona mocinha. Brigas matrimoniais, separações, amores impossíveis, traições, mentiras. Quem estava triste, logo ficava radiante. Quem estava nervoso, se acalmava ao ouvir sua voz serena. O vizinho, que sofria com as aflições de não ter trabalho, começava a crer na força de vontade e perseverança. O colo, o cafuné, poucas palavras eram suficientes para acalmar qualquer coração desolado.

Dona Mocinha, além de toda sua bondade e solidariedade, era considerada a mais católica de todas as mulheres do bairro. Todo o dia estava lá, de joelhos pedindo perdão, mesmo sem ter pecado. Pelo menos era o que seus admiradores imaginavam. Mulher de fé, moral inabalável. O céu a esperava. Só poderia ser esse o lugar de uma mulher seguidora dos bons costumes e que, em momento algum, se entregou aos pecados da carne. Santa dona Mocinha. Se o bairro Alagadiço pudesse, a canonizava.  Os brasileiros, então, teriam uma nova santa.

A fama de dona Mocinha era grande. Popularizou-se de um jeito que nem mesmo ela imaginara. Na verdade, ela nem premeditara. Ela virou a santa Mocinha sem fazer milagres. Era uma sexta-feira. Enquanto o Brasil vibrava com o programa do Chacrinha, dona Mocinha resolver folhear um livro. Passou toda a tarde tentando decifrar cada palavra. Isso não foi possível, mas as letras, ela reconhecia facilmente. Escureceu. E quando ela estava quase dentro de casa, escuta uns gritos. Era uma jovem depressiva que ameaçava se jogar do quinto andar. Só não se entregara à morte, porque dona Mocinha usou as palavras certas, o olhar encorajador e a voz tão doce, tão doce que a pobre garota cedeu aos seus encantos. Depois disso, dona Mocinha acompanhou todo o tratamento psicológico e a gravidez da garota. Tratava a menina como uma mãe, o garotinho como seu neto. Desde então, dona Mocinha passou a ser conhecida e adorada por todos da vizinhança.

Anos depois, quando pensava que a morte estava próxima, eis que um levantamento bibliográfico em Palafitas, cidade natal de dona Mocinha, surgiu para mudar toda a sua vida. Um grupo de estudantes da Universidade de Palafitas produziu um livro-reportagem intitulado “As quengas de Palafitas: o Bordel que fundou a cidade de Palafitas, no interior de Pernambuco.” A reconstrução da história dessa cidade foi tão polêmica que virou notícia de rádio, revistas, on-lines, jornais, TV’s. Até prêmios, os alunos ganharam com o tema. E uma das premiações foi a publicação da reportagem na revista “Cidades” que circula em todo o país. Circulou tanto que essa revista foi parar na banca da esquina da cidade de dona Mocinha.

Na capa, as prostitutas do cabaré das Palafitas. No interior da edição, a história da prostituta mais cobiçada do cabaré: “Lulu Desejo”. Lulu Desejo era linda. Olhos azuis, cabelos lisos e sedosos, a pele de cor de canela. Morena dos olhos azuis. Bastava os clientes fitarem os olhos que eram enfeitiçados. O destino: o quarto e 500 cruzeiros. Ela praticamente fundou o cabaré. Foi a primeira prostituta.

Menina do mato, passava fome e fora vendida pelos pais à senhora Zuleica, dona do Cabaré. Quando Zuleica chegou em Palafitas era só terreno e BR para vários lugares do país. Percebendo que muitos caminhoneiros ali paravam, ela resolveu fazer uma casa de repouso. Mas os caminhoneiros queriam sempre algo mais. Mulher, então, era o que mais desejavam. Zuleica, então, resolveu fazer o teste.

Disponibilizou a pequena Luzia. E num é que deu dinheiro. Como toda negociante, pensou longe. Comprou mais meninas. Algumas vinham até com as famílias que foram povoando Palafitas. Em um ano, a cidade já tinha muitos habitantes. A economia durante muito tempo foi movimentada pelo bordel. Era a menina da limpeza, o garçom, o porteiro, o Bar Man, o motorista, as prostitutas. O bordel virou cidade.

Na revista, o diário de Lulu Desejo. A integrante mais antiga havia fugido. Esqueceu de se proteger e engravidou do marido de dona Zuleica. Traiu a mulher que lhe dera a mão e ainda ia dar ao seu esposo o filho que ela não podia gerar. Como um cangaceiro pulou de cidade em cidade até encontrar alguém para fazer um aborto. Quando encontrou, entrou em profunda tristeza. Depois de conhecer uma senhora católica, que lhe acolheu, se arrependeu de tudo que fizera. Mas, já era tarde. Aquela linda garota, ao poucos, se tornou uma idosa também. Saias longas, blusas longas. O cabelo todo enrolado. Depois da morte da velha católica, partiu para a cidade de Caracas e foi morar no bairro Alagadiço. 

Viveu lá até ir à banca de revista e ver sua foto, em tempos de juventude, estampada na capa da revista. Mãos trêmulas, lágrimas a cair. O coração acelerou tanto que, quando parou, foi de vez. Sem nada falar, sem nada pedir, morreu a mulher mais ética, mais correta, a santa. Agora a única lembrança é a estátua em homenagem à santa Mocinha.

Michelle Laudilio
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

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