sábado, 8 de outubro de 2011

Miriam e o Menino que não respirava

Da minha janela, dá para se ter uma ótima visão da casa dela, seu nome eu não sei, mas o ar de mistério com que ela sai todos os dias de casa me intriga, sempre sai às 8h da manhã e retorna às 9h, com duas sacolas nas mãos. O que tem naquelas sacolas é, com certeza, algo mais misterioso do que seu olhar. Em uma de minhas observações diárias, vi seu marido saindo para trabalhar como sempre fazia de manhã e voltava à noite. Ela, como todos os dias, às 8h em ponto foi para algum lugar que eu, apesar de curioso, nunca tive coragem de segui-la. Na vizinhança, dizem que ela se chama Joana, ou talvez Margarida, mas acho mesmo que tem cara de Miriam, nome de gente certinha e que adora sair e voltar para casa sempre no mesmo horário. Minha vizinha (Miriam) não saiu hoje, seu marido foi mais cedo, parecia que viajaria e estava atrasado, ela nem apareceu na porta. Dez horas e nada dela aparecer; 11h, ainda nada. Teria Miriam dormido demais? Talvez tenha tomado remédio para dormir e perdido a hora do “sabe-se lá o quê?”. Mas, uma hora ou outra, ela apareceria com sua cara de nada, cabelos presos e roupas em tons escuros, sempre caminhando na mesma velocidade. Não vi Miriam sair, mas vi quando voltou tarde da noite e sem nenhuma sacola! “O marido viajou e ela aproveitou”, pensei. Mas Miriam era mulher de um homem só, o pouco que se sabia sobre eles, era que eram casados há anos e se amavam muito, ninguém nunca ouviu uma discussão vinda daquela casa.

Todo dia levanto cedo, preparo o café da manhã do meu marido que amo muito, e às 8h em ponto, quando ele já saiu para o trabalho, faço o meu hobby diário de passear pelo quarteirão em busca de novidades. Sempre passo no mercadinho para comprar chocolates, um vício, que tem de ser rigidamente controlado - 1 barra por dia - repito todas as manhãs. A de chocolate branco é para o meu marido e o, ao leite, para mim, trago sempre em sacolas separadas, meu cérebro não pode pensar que é tudo meu. A vizinhança é tão chata e monótona, minha única diversão diária é olhar para o rapaz da casa em frente, ele sempre está na varanda ou na janela, não se sabe o porquê, acho que ele possui problemas respiratórios e tem que “tomar um ar” de vez em quando. Todos os dias, às 8h da manhã eu o observo, ele está lá na janela branca com o olhar vazio, acho que ele não estuda, acho que ele não faz nada, só passa o dia tentando respirar e comendo o cereal que a mãe dele traz do supermercado. Tenho vontade de bater na porta e perguntar seu nome, só por curiosidade, mas meu marido não entenderia. Poderia dizer que ele é doente e precisa de visitas. É isso, irei visitá-lo uma hora dessas. Na verdade já tentei fazer isso ontem, meu marido viajou e para não estarem todos atentos saí em horário diferente, dei a volta pela rua, sentei em um banco na pracinha atrás da casa dele, a visão era espetacular, descobriria tudo sobre o menino que não respirava. O dia inteirinho se passou, ele andava para lá e para cá, parecia preocupado, estava esperando alguém chegar e esse alguém não chegava. Eu já estava angustiada quando olhei para o relógio e já era bem tarde, corri para casa. Nesse dia, não comi nenhum chocolate.

Hoje, Miriam saiu de roupa azul cor do céu, eu acho que pela primeira vez eu a vi bonita, talvez eu já esteja acostumado com seu jeito “particular”. Nos últimos dias, Miriam estava inquieta, caminhava mais rápido e o marido ainda não voltara. Se eu lhe desse “Bom dia”, escutaria sua voz e tudo ficaria mais claro, quem sabe espiaria o que tem nas sacolas, disfarçadamente. Está resolvido! Vou dizer “Bom dia, querida vizinha”, sem o querida, apenas “Bom dia”. Ela vai responder e depois nos falaremos regulamente, um dia serei amigo de Miriam e carregarei sua sacola. Hoje, não pude observá-la, estou de saída para um emprego temporário que me arranjaram.

Fiquei surpresa no dia em que o rapaz que não respirava saiu de casa e, com fisionomia de trabalhador, vestia um uniforme verde escuro e parecia até mais saudável. Como meu marido ainda não chegou de viagem, posso voltar um pouco mais tarde para casa. Se eu tivesse carro, poderia oferecer uma carona para o rapaz não se cansar, mas como vou ao mercado a pé, no máximo ofereceria um “Olá”, ele poderia retribuir se fosse educado. Hoje, a vontade de comer chocolate veio em dobro, fui ao mercadinho e quando cheguei entrei em desespero por não ver minha barra na prateleira. Disseram que elas haviam vencido e o pessoal recolheu. Indignada, peguei outra marca e paguei, quando estava de saída alguém do mercado gritou “Ainda tem uma...” Eu nem me virei para ver quem era, estava tão brava que apenas andei para casa e fechei a porta.

Lícia Loltran
Graduanda do 2º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

A Velha Carolina

As semanas passavam lentamente naquele lugar que, ao invés de ser sua moradia, aprisionava sua liberdade de moço. Queria ir à cidade, precisava encontrar a jovem que lhe roubasse todo desejo e desse significado a sua existência. Os dias, cheios de luz e de mística da pequena Fazenda Carolina enchiam os olhos do Veinho, mas não a alma... Todo encanto se fora, transformando-se em lágrimas até se esgotar com o vazio de cada noite dos sete dias da semana e de quanto tempo tivesse.

Queria ir à cidade, precisava encontrar uma jovem que aliviasse todo desejo de ser quem era em sua plenitude de homem, que roubasse as horas e o sossego, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar.

Queria ir à cidade, meu companheiro, amigo de infância! Eu lembro a rua principal de barro seco, por onde as carroças passavam pra chegar à feira e das casinhas da vila, da criança que acenou na porta, será que já cresceu? Eram duas, mas percebeu somente o nome de uma, Carolina.  Não vemos moças por estas terras, somente a menina que vivia a existir nos olhos do bicho, no qual corria o campo, tocava o gado e os dias.
Gostava de enxugar o rosto molhado de suor e água que escorria no canto do olho de quem era sua realidade, trabalho e ilusão. Veinho inclinou-se, com  ternura sobre o dorso do animal, seu companheiro de labuta, e disse: vou viajar.

Surgira do nada, de onde viria tal poeira? Era o único instante em que podia enxergar Carolina, mas, era, de fato, ela? Não sabia, não sabia se tinha crescido, não sabia se era ilusão, mas via, e ele ainda estava a contemplar a menina nos olhos do bicho até o branco se tornar cinza e escuridão. Agarrado no pescoço do animal partiu depressa, como quem foge do vento, do tempo e de si mesmo. Num galope retardado pela travessia do riacho retira um broto da primeira floração para levar ao seu destino. Agora, não tinha mais tempo, precisava correr, o vento logo acalmaria de novo e a mesma vida logo se clarearia diante dos seus olhos quando avistou a estrada de barro e a mesma casinha na qual as meninas brincavam na porta.

Queria ir à cidade e encontrar as mesmas meninas. Será que Carolina cresceu? Precisava encontrar a jovem que aliviasse todo o seu desejo, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar. Uma senhora aparece com uma jovem na porta, com as mesmas feições de juventude guardadas na memória de Veinho que entregou a flor do Mandacaru e disse: Carolina? E a menina pergunta: Essa flor é pra vozinha? Vou levar lá dentro. Veinho compreendeu, então, que o tempo lhe passara despercebido diante dos seus olhos empoeirados.

Precisava voltar pra Fazenda Carolina onde a menina esperava por ele, jovem nos olhos do bicho. Como de costume, antes de montar, enxugou o rosto molhado de suor e água que escorreu no canto do olho. O dia começa a clarear. E a velha irmã gêmea Carolina, aparece na porta de casa para acenar um novo adeus.

Michael Ribeiro
Graduando do 6º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Quer casar comigo?


Aquela pergunta não lhe saia da cabeça. Por quantos anos esperou, ansiosamente, por aquele momento? Sua mãe sempre dizia: “mulher que não casa não tem serventia nesse mundo”. Ela já beirava os trinta anos. Era jovem ainda ou já se tornara uma encalhada? “Tristes das mulheres que não encontram marido. Tornam-se noviças ou ficam para titia mesmo, dando trabalho aos parentes pelo resto da vida. Pobre sina essa que as mulheres de outrora temiam...” pensava Lívia, com suspiros prolongados, assim como os pensamentos. 

Pela janela da sala lúgubre, de paredes brancas e mobília gasta, a mulher de cabelos longos, pretos em contraste com a pele clara – quase transparente – observava as pessoas que passavam. Muitos iam solitários, seguindo a escuridão da noite. Outros passavam acompanhados, rindo a esmo, traçando planos compartilhados. E ela estava ali, com quase os seus trinta anos, sentada em uma cadeira de balanço e espiando a rua pela janela.

A vida passa depressa... Como, então, recusar um pedido de casamento? Mas as coisas estão tão mudadas... Será que o melhor não seria aproveitar a vida de solteira, saindo, rindo, dançando, conhecendo pessoas novas? Para isso, ela teria que ultrapassar aquelas paredes brancas e, pior que isso, esquecer os preceitos que a sua mãe fez questão de lhe ensinar, por toda a vida. Não, não. Isso é bobagem. Lívia sabia muito bem que a mulher, para ser mulher realmente, tem que ter casa, marido, casa cheia de filhos. Ela sabia que nascera para isso, porque, então, esses pensamentos agora? 

A brisa da noite penetrou com força, de repente, a janela da sala, interrompendo as divagações da mulher solitária. Os quadros pregados nas paredes levavam Lívia a imaginar a vida daquelas que foram as suas antepassadas. Teriam elas sofrido as mesmas aflições, quando tomadas pela proposta que todas as mulheres anseiam receber?  Ela nunca haveria de saber.

Namorado nunca tivera, apesar de ter feito certo sucesso com os garotos da Rua da Mangueira, onde viveu, praticamente, toda a infância e adolescência. Mas a timidez e as convenções sociais da mãe não permitiram que um “amor de verão”, ou um “amor para a vida toda”, surgisse. Por isso, ela não sabia como reagir num momento como este. O susto, o medo, a dúvida e a felicidade decidiram atuar em um só momento. As pernas tremeram, o coração disparou e as palavras decidiram fugir. Todas na mesma velocidade. Quer casar comigo? Sim, quero. É tudo o que eu quero. Tudo que eu sempre quis. Era isso que ela gostaria de ter dito, mas não podia, porque o momento era outro e as palavras fugiam incansavelmente e inalcançavelmente. 

O tempo passou e ela não percebeu. Era a hora de fechar a janela. Levantar da cadeira de balanço que, há muito tempo, tornara-se a sua única companheira nas noites intermináveis de ilusões. O vaivém da cadeira fazia-a viajar em situações, em momentos nunca vividos. Lívia tremeu, hesitou, emocionou-se. Mas não precisava responder ao pedido. Quer casar comigo? é uma frase que ela nunca teve a felicidade de ouvir. 

Na verdade, a proposta foi do mocinho para a mocinha da telenovela. Aquela, bem melodramática, que a solteirona não deixava de assistir. Se a mocinha respondeu sim ou não, Lívia não sabia. Ela estava a imaginar-se no seu lugar. Saiu da cadeira, fechou a janela e foi para a cama vazia, que nunca sentiu o calor noturno de uma alma masculina. 

Edilane Ferreira
Graduanda do 6º período de Jornalísmo em Multimeios da UNEB

sábado, 24 de setembro de 2011

A Santa


Já passara dos oitenta anos, embora aparentasse cinqüenta. A voz continuava a mesma de quando tinha seus vinte anos. Os cabelos, porém, já não eram os mesmos. O rosto também não. As mãos? Tão calejadas, que as crianças da rua já não pediam a bênção.

Dona Luzinha era mais conhecida como dona mocinha. Mocinha, porque a virgindade tão conservada, nunca fora tirada. No Bairro Alagadiço, um dos mais antigos da cidade de Caracas, dona Mocinha era considerada uma santa. Nunca se casou, embora possuísse todas as qualidades domésticas para um relacionamento matrimonial, e nunca se envolveu com nenhum homem. Não que ela tivesse relatado isso a algum vizinho, porém era isso que todo o bairro imaginava: ela é, sem dúvida, virgem.

Dona Mocinha ensinava as noivas do bairro como cozinhar bem, cuidar da casa, costurar. Apesar de nunca ter gerado um filho, era considerada mãe. Quem precisava de conselho, lá estava ela. Recebia o rico e o pobre, o limpo e o sujo com o mesmo sorriso radiante. Era como um padre que guardava até os mais bizarros segredos. Inúmeras estórias eram divididas com dona mocinha. Brigas matrimoniais, separações, amores impossíveis, traições, mentiras. Quem estava triste, logo ficava radiante. Quem estava nervoso, se acalmava ao ouvir sua voz serena. O vizinho, que sofria com as aflições de não ter trabalho, começava a crer na força de vontade e perseverança. O colo, o cafuné, poucas palavras eram suficientes para acalmar qualquer coração desolado.

Dona Mocinha, além de toda sua bondade e solidariedade, era considerada a mais católica de todas as mulheres do bairro. Todo o dia estava lá, de joelhos pedindo perdão, mesmo sem ter pecado. Pelo menos era o que seus admiradores imaginavam. Mulher de fé, moral inabalável. O céu a esperava. Só poderia ser esse o lugar de uma mulher seguidora dos bons costumes e que, em momento algum, se entregou aos pecados da carne. Santa dona Mocinha. Se o bairro Alagadiço pudesse, a canonizava.  Os brasileiros, então, teriam uma nova santa.

A fama de dona Mocinha era grande. Popularizou-se de um jeito que nem mesmo ela imaginara. Na verdade, ela nem premeditara. Ela virou a santa Mocinha sem fazer milagres. Era uma sexta-feira. Enquanto o Brasil vibrava com o programa do Chacrinha, dona Mocinha resolver folhear um livro. Passou toda a tarde tentando decifrar cada palavra. Isso não foi possível, mas as letras, ela reconhecia facilmente. Escureceu. E quando ela estava quase dentro de casa, escuta uns gritos. Era uma jovem depressiva que ameaçava se jogar do quinto andar. Só não se entregara à morte, porque dona Mocinha usou as palavras certas, o olhar encorajador e a voz tão doce, tão doce que a pobre garota cedeu aos seus encantos. Depois disso, dona Mocinha acompanhou todo o tratamento psicológico e a gravidez da garota. Tratava a menina como uma mãe, o garotinho como seu neto. Desde então, dona Mocinha passou a ser conhecida e adorada por todos da vizinhança.

Anos depois, quando pensava que a morte estava próxima, eis que um levantamento bibliográfico em Palafitas, cidade natal de dona Mocinha, surgiu para mudar toda a sua vida. Um grupo de estudantes da Universidade de Palafitas produziu um livro-reportagem intitulado “As quengas de Palafitas: o Bordel que fundou a cidade de Palafitas, no interior de Pernambuco.” A reconstrução da história dessa cidade foi tão polêmica que virou notícia de rádio, revistas, on-lines, jornais, TV’s. Até prêmios, os alunos ganharam com o tema. E uma das premiações foi a publicação da reportagem na revista “Cidades” que circula em todo o país. Circulou tanto que essa revista foi parar na banca da esquina da cidade de dona Mocinha.

Na capa, as prostitutas do cabaré das Palafitas. No interior da edição, a história da prostituta mais cobiçada do cabaré: “Lulu Desejo”. Lulu Desejo era linda. Olhos azuis, cabelos lisos e sedosos, a pele de cor de canela. Morena dos olhos azuis. Bastava os clientes fitarem os olhos que eram enfeitiçados. O destino: o quarto e 500 cruzeiros. Ela praticamente fundou o cabaré. Foi a primeira prostituta.

Menina do mato, passava fome e fora vendida pelos pais à senhora Zuleica, dona do Cabaré. Quando Zuleica chegou em Palafitas era só terreno e BR para vários lugares do país. Percebendo que muitos caminhoneiros ali paravam, ela resolveu fazer uma casa de repouso. Mas os caminhoneiros queriam sempre algo mais. Mulher, então, era o que mais desejavam. Zuleica, então, resolveu fazer o teste.

Disponibilizou a pequena Luzia. E num é que deu dinheiro. Como toda negociante, pensou longe. Comprou mais meninas. Algumas vinham até com as famílias que foram povoando Palafitas. Em um ano, a cidade já tinha muitos habitantes. A economia durante muito tempo foi movimentada pelo bordel. Era a menina da limpeza, o garçom, o porteiro, o Bar Man, o motorista, as prostitutas. O bordel virou cidade.

Na revista, o diário de Lulu Desejo. A integrante mais antiga havia fugido. Esqueceu de se proteger e engravidou do marido de dona Zuleica. Traiu a mulher que lhe dera a mão e ainda ia dar ao seu esposo o filho que ela não podia gerar. Como um cangaceiro pulou de cidade em cidade até encontrar alguém para fazer um aborto. Quando encontrou, entrou em profunda tristeza. Depois de conhecer uma senhora católica, que lhe acolheu, se arrependeu de tudo que fizera. Mas, já era tarde. Aquela linda garota, ao poucos, se tornou uma idosa também. Saias longas, blusas longas. O cabelo todo enrolado. Depois da morte da velha católica, partiu para a cidade de Caracas e foi morar no bairro Alagadiço. 

Viveu lá até ir à banca de revista e ver sua foto, em tempos de juventude, estampada na capa da revista. Mãos trêmulas, lágrimas a cair. O coração acelerou tanto que, quando parou, foi de vez. Sem nada falar, sem nada pedir, morreu a mulher mais ética, mais correta, a santa. Agora a única lembrança é a estátua em homenagem à santa Mocinha.

Michelle Laudilio
Graduanda do 6º período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

"Saudade sim, Tristeza não"




Era noite de domingo, nove de julho de 2001. Francisca Leandro estava em casa com o filho mais velho quando o telefone toca. Do outro lado da linha, recebeu a notícia mais dolorosa de sua vida: o filho caçula, Ubirleide Leandro, sofreu um acidente perto da cidade de Caxias e estava internado em estado grave.

Na verdade, Ubirleide já estava morto. Mas preferiram prepará-la antes de dar a informação triste.  Como dizer para uma mãe que seu filho, aos 21 anos e sete meses, no auge da juventude, não iria mais comer tomate e manga verde com sal, sentar com os amigos para tomar aquela cervejinha ou pular carnaval?Coisas que adorava fazer. Sem falar dos planos e projetos futuros interrompidos em fração de segundos.

Depois de resolver os trâmites legais, na terça-feira pela manhã o pai chega a casa da família com o corpo do filho. O clima no velório era de sobriedade. A alegria e as brincadeiras de Ubirleide já não existiam mais.  No rosto dos familiares e amigos, apenas sofrimento. Ao mesmo tempo, Francisca era confortada, a dor que percorria suas entranhas, era semelhante a que sentiu quando o colocou no mundo. “Senti dores, iguais as do parto”, declara ao tentar descrever o momento. 

Chega a hora do sepultamento. Talvez a mais difícil, pois é a despedida. Na volta pra casa Francisca, reuniu forças para terminar de preparar os rituais fúnebres. “Passei uma semana organizando lembrança e missa do sétimo dia”, lembra.

A morte prematura do filho trouxe uma reconfiguração do ambiente familiar e da rotina de Francisca. Assim como o filho mais novo e o marido, também dirigia caminhão. O trauma da perda a fez mudar a atividade profissional. Para suportar a saudade de Ubirleide, passou a ir diariamente ao cemitério. “No início levava flores, acendia velas, rezava e chorava muito no túmulo dele”, conta.


Seis meses depois do sepultamento, dona Francisquinha, como é carinhosamente chamada pelos coveiros, construiu o jazigo da família e transferiu os restos mortais do filho. No momento da transferência do tumulo para mausoléu abriu o caixão. O corpo de Ubirleide inerte parecia ter a mesma aparência de quando estava vivo, o que a emocionou profundamente. A partir daí, além das flores que costumava levar, passou a depositar no túmulo objetos que tinham significado para ele.

Anos depois, a rotina de dona Francisca é a mesma. O dia começa cedo no terminal de ônibus da cidade. Arruma as plantas e o tabuleiro de doces e queijos que serão comercializados no decorrer do dia. No final de tarde, vai com o marido para o cemitério visitar o túmulo do filho, ritual que já dura uma década. “Enquanto for viva, não deixo de ir lá”, comenta. A única vez que deixou de visitar o filho foi quando quebrou o pé e o marido estava viajando. Ela ainda assim queria ir ao cemitério, mas não havia quem a levasse.

Dona Francisa é uma mulher de poucas palavras, monossilábica. A força dela vem das adversidades.Todos os dias, por volta das cinco e meia da tarde, ela segue em sua caminhonete vermelha carregada de plantas para o cemitério. Enquanto seu Severino conversa com o coveiro, ela percorre os corredores estreitos do local, entre uma cova e outra, até localizar o túmulo do filho.

Ao chegar ao mausoléu da família, com fachada em mármore e portão metálico dourado forrado com tela, começa a arrumá-lo. À noite, uma porta também dourada típica de estabelecimentos comerciais é baixada para impedir furtos.  O ambiente é nostálgico. Uma tolha branca de linho cobre o túmulo. Nas laterais dois pufes que acompanham tapete e almofada. No quadro, a fotografia de Ubirleide vestido com um abada de carnaval. As prateleiras com objetos de decoração, vasos com arranjos de flores naturais e latinha de cerveja, refrigerante, frutas e um recipiente com sal de cozinha. “Essas coisas demonstram o que ele gostava”, diz dona Francisca sobre o sentido de trazer esses objetos para o cemitério.

O zelo ao jazigo, ao longo desses anos, foi a maneira que encontrou para lidar com a tristeza, a dor da perda. “É como se aqui fosse a casa dele. Penso que não morreu, apenas se mudou para outra cidade e um dia volta”, declara. Agora, ela pensa em reformar o jazigo. Tapete, toalha e jarros vão ser trocados para compor a nova decoração que será azul. Cada objeto exposto revela o amor e cuidado em preservar a memória do filho. “onde ele estiver vai ver o carinho que sinto por ele”, conta.

A preocupação de dona Francisca é que o túmulo de Ubirleide não fique abandonado quando vier a faltar, por isso já avisou a família que quer ser enterrada em sua terra Juazeiro do Norte e os restos mortais do filho devem ser transferidos e colocados no mesmo mausoléu com os dela. “Quero que fique junto de mim”, declara. Ela acredita que a morte traz tristeza e Deus não quer tristeza. "Saudade, sim... tristeza, não".

Por Josélia Moraes (texto e foto) e Paloma Aimée (texto)

domingo, 18 de setembro de 2011

“Eu amo você demais”



Caminhamos rumo a sua casa, um dos celulares toca, conversa durante todo o percurso e, com a outra mão, lê mensagens que também chega do outro celular. No itinerário até sua residência, ele conversa com todos que encontra, um sobrinho, o guarda do posto de saúde, os estudantes que vão à escola. Assim é Cleuton César Ferreira, mais conhecido como Kekê, 33 anos, dos quais 26 anos no meio artístico.
Vascaíno de coração e apaixonado por suas obras, Kekê é hiperativo, levanta as mãos e a cabeça quando fala, balança muito as pernas e sempre dispara a célebre frase “eu amo você demais”, para aqueles indivíduos dispostos a ouvi-lo ou que tenha algum grau de intimidade.
Pai de três filhos, um adolescente de 12 anos, uma menina de seis e uma criança de dois, a quem ele chama de dinossauro. Keké avisa que é uma forma carinhosa de chamar o filho, por causa da cabeça achatada. Coisas de artista. A excentricidade é comprovada na chegada a sua casa, quando alegremente seu filho vem recebê-lo no portão.
Natural de Curaçá, Kekê foi influenciado no meio artístico pelos amigos Pinzoh, Dodó, Nego, Clóvis, Gatinha. Todos eles personalidades curaçaenses nas palavras do próprio.
Kekê pinta, e pinta muito. Em tela, em madeira, em CD´s, em telhas. Uma de suas características é fazer alguma obra, geralmente uma tela de artistas consagrados ou regionais, e levá-la aos shows. “É um tiro no escuro, levo as telas e lá vejo o que vai acontecer, um episódio marcante foi o show do Capital Inicial, onde Dinho Ouro Preto me convidou para subir ao palco”, pontua, em êxtase.
A data ele se lembra bem, era quatro de fevereiro de 2011. Segundo Kekê, este foi o maior reconhecimento que um artista de renome nacional já lhe concedeu. Recentemente, foi ao show de Maria Gadú, também ocorrido em Petrolina, lá embolsou R$ 950,00 por quatro telas vendidas a cantora. Foi o maior valor pago ao artista pelas suas obras.
Porém, o que lhe trouxe maior satisfação foi a criação, em meados de 1994/1995, do Movimento Bichos Escrotos, junto com Maurizio Bin, também curaçaense. O movimento propunha envolver cultura, arte, música, dança, e que posteriormente tornou-se uma Banda de Rock, em plena atividade atualmente.
Sobre seus processos de criação, Kekê é pontual. “Minha arte é meio grafite, meio pincel, meio arte estêncil, meu estilo é próprio”. Calçado em um tênis estilo allstar, calça jeans, e camisa preta personalizada por ele mesmo, Keké tem todo um estilo próprio, é simples, mas nada modesto. Como artista, ele quer ser reconhecido e é. Já participou dos programas Mosaico Baiano e Bahia Esporte, da TV Bahia, do Globo Esporte nacional e nas Tvs e jornais locais.
“Eu gosto de levar a tela para o show e deixar que a galera toque, sinta, pegue nela, a energia da tela aumenta”, diz um Kekê entusiasmado, alegre e vibrante.
Um vizinho chega, começam a conversar sobre problemas no encanamento da casa de Kekê e eu me despeço de Clécia Maria, sua esposa, dos dois filhos do casal, e dele, o artista que pinta telas e contagia todo aquele que se aproxima e conversa com ele.
Juliano Ferreira (texto)
Graduando do 4° Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB
Catharine Matos (foto)
Graduanda do 6º Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB

Nas órbitas de Ângelo Roncalli


“Hiato. Poeta inexato. Náufrago. Bárbaro. Sempre mudando”. É com essa linguagem polissêmica, conotativa, que Ângelo Roncalli se define. Mas não poderia ser diferente. Que melhor forma um poeta poderia encontrar para falar de si, senão fazendo uso da própria poesia? Para esse concretista, a autodefinição não pode fugir do cosmo, ou melhor, das órbitas. Como diz Luiz Hélio Alves, Roncalli busca o “totalismo” para descrever a sua poesia, e eu, com a permissão da palavra, digo que ele busca o “totalismo” para descrever a si próprio.
Juazeirense desde quando nasceu, no primeiro dia de abril de 1976, ele não é um mentiroso. É, antes, um fingidor, já que “finge tão completamente que chega a sentir que é dor, a dor que deveras sente”, como já dizia o poeta português, Fernando Pessoa. Ângelo podia ser qualquer Ângelo, mas não é. Ele é Roncalli, assim como o Papa João XXIII, que se chamava Ângelo Giuseppe Roncalli. Mas a sua avó, que foi quem lhe deu esse nome, decidiu abrir mão do Giuseppe. Só Ângelo Roncalli estava bom. Segundo o poeta, ela fez isso porque era muito católica. “Batizou-me com o nome de Papa e mudou minha vida”, diz. E deve ter mudado mesmo, afinal não é para qualquer um carregar o nome de um Papa.   
A relação de Roncalli com a poesia começou em casa, ao som de João Gilberto, dos Novos Baianos e de Caetano Veloso. Sem esquecer de Legião Urbana e dos Titãs. “A música foi minha porta de entrada para a poesia”, relembra o artista. As suas influências foram a poesia concreta e a poesia beatnik americana, poetas como Arthur Rimbaud entre outros.
Ao ser questionado sobre a crença na inspiração ou no trabalho árduo da palavra, como defendia João Cabral de Melo Neto, Roncalli é incisivo: “não há limites para a poesia. Escrever pode ser um processo conclusivo ou obsessivo. Depende de quem escreve”. A sua produção não fica engavetada, nasce de uma vez, “no viés”, como ele mesmo diz. Para Roncalli, é poesia tudo que ela escolha poetar. E a dele opta por poetar a convivência, o despudor e a metapoesia. Talvez por essa razão, Josemar Martins (Pinzoh), que também é poeta, classifique a literatura de Roncalli como “universal”. Não é à toa que o seu primeiro e único livro publicado - até o momento – chame-se “Orbitais – um ato de novas conquistas”. 
Seja por escolha, destino ou coincidência, Ângelo Roncalli, que também é Bacharel em Ciências Contábeis, dirige a empresa Orbitais Negócios Integrados, nome emprestado do livro, justamente pela cosmogonia, pelo totalismo que ele representa. Embora sendo um profissional liberal, a poesia ocupa um lugar singular em sua vida. “Escrevo porque é minha forma de expressar minhas observações sobre nosso cotidiano e sobre o próprio ato de escrever. Escrevo porque sou um existencialista romântico, que ainda acredita num mundo civilizado”, explica Roncalli, afirmando que a arte poética é o próprio “brinde da existência”.
Na criação do poeta não há segredos. “É sempre um processo perceptivo. Um mote poético. Captado através do cotidiano. Depois paro e escrevo o poema”, conta. Em meio a tantas tecnologias como a poesia é produzida? Ainda com a caneta e o papel ou com os meios eletrônicos? Roncalli não poderia dar melhor resposta: “Caneta e Papel. Computador e Word. Hidrocor e papel. Além de paredes, guardanapos, outdoor, camisa. Meu sonho é reconstruir o cais com poemas referenciais”. Quem duvida disso? 
Edilane Ferreira (texto).
Foto - Divulgação
Graduanda do 6° Período de Jornalismo em Multimeios da UNEB