sábado, 8 de outubro de 2011

Miriam e o Menino que não respirava

Da minha janela, dá para se ter uma ótima visão da casa dela, seu nome eu não sei, mas o ar de mistério com que ela sai todos os dias de casa me intriga, sempre sai às 8h da manhã e retorna às 9h, com duas sacolas nas mãos. O que tem naquelas sacolas é, com certeza, algo mais misterioso do que seu olhar. Em uma de minhas observações diárias, vi seu marido saindo para trabalhar como sempre fazia de manhã e voltava à noite. Ela, como todos os dias, às 8h em ponto foi para algum lugar que eu, apesar de curioso, nunca tive coragem de segui-la. Na vizinhança, dizem que ela se chama Joana, ou talvez Margarida, mas acho mesmo que tem cara de Miriam, nome de gente certinha e que adora sair e voltar para casa sempre no mesmo horário. Minha vizinha (Miriam) não saiu hoje, seu marido foi mais cedo, parecia que viajaria e estava atrasado, ela nem apareceu na porta. Dez horas e nada dela aparecer; 11h, ainda nada. Teria Miriam dormido demais? Talvez tenha tomado remédio para dormir e perdido a hora do “sabe-se lá o quê?”. Mas, uma hora ou outra, ela apareceria com sua cara de nada, cabelos presos e roupas em tons escuros, sempre caminhando na mesma velocidade. Não vi Miriam sair, mas vi quando voltou tarde da noite e sem nenhuma sacola! “O marido viajou e ela aproveitou”, pensei. Mas Miriam era mulher de um homem só, o pouco que se sabia sobre eles, era que eram casados há anos e se amavam muito, ninguém nunca ouviu uma discussão vinda daquela casa.

Todo dia levanto cedo, preparo o café da manhã do meu marido que amo muito, e às 8h em ponto, quando ele já saiu para o trabalho, faço o meu hobby diário de passear pelo quarteirão em busca de novidades. Sempre passo no mercadinho para comprar chocolates, um vício, que tem de ser rigidamente controlado - 1 barra por dia - repito todas as manhãs. A de chocolate branco é para o meu marido e o, ao leite, para mim, trago sempre em sacolas separadas, meu cérebro não pode pensar que é tudo meu. A vizinhança é tão chata e monótona, minha única diversão diária é olhar para o rapaz da casa em frente, ele sempre está na varanda ou na janela, não se sabe o porquê, acho que ele possui problemas respiratórios e tem que “tomar um ar” de vez em quando. Todos os dias, às 8h da manhã eu o observo, ele está lá na janela branca com o olhar vazio, acho que ele não estuda, acho que ele não faz nada, só passa o dia tentando respirar e comendo o cereal que a mãe dele traz do supermercado. Tenho vontade de bater na porta e perguntar seu nome, só por curiosidade, mas meu marido não entenderia. Poderia dizer que ele é doente e precisa de visitas. É isso, irei visitá-lo uma hora dessas. Na verdade já tentei fazer isso ontem, meu marido viajou e para não estarem todos atentos saí em horário diferente, dei a volta pela rua, sentei em um banco na pracinha atrás da casa dele, a visão era espetacular, descobriria tudo sobre o menino que não respirava. O dia inteirinho se passou, ele andava para lá e para cá, parecia preocupado, estava esperando alguém chegar e esse alguém não chegava. Eu já estava angustiada quando olhei para o relógio e já era bem tarde, corri para casa. Nesse dia, não comi nenhum chocolate.

Hoje, Miriam saiu de roupa azul cor do céu, eu acho que pela primeira vez eu a vi bonita, talvez eu já esteja acostumado com seu jeito “particular”. Nos últimos dias, Miriam estava inquieta, caminhava mais rápido e o marido ainda não voltara. Se eu lhe desse “Bom dia”, escutaria sua voz e tudo ficaria mais claro, quem sabe espiaria o que tem nas sacolas, disfarçadamente. Está resolvido! Vou dizer “Bom dia, querida vizinha”, sem o querida, apenas “Bom dia”. Ela vai responder e depois nos falaremos regulamente, um dia serei amigo de Miriam e carregarei sua sacola. Hoje, não pude observá-la, estou de saída para um emprego temporário que me arranjaram.

Fiquei surpresa no dia em que o rapaz que não respirava saiu de casa e, com fisionomia de trabalhador, vestia um uniforme verde escuro e parecia até mais saudável. Como meu marido ainda não chegou de viagem, posso voltar um pouco mais tarde para casa. Se eu tivesse carro, poderia oferecer uma carona para o rapaz não se cansar, mas como vou ao mercado a pé, no máximo ofereceria um “Olá”, ele poderia retribuir se fosse educado. Hoje, a vontade de comer chocolate veio em dobro, fui ao mercadinho e quando cheguei entrei em desespero por não ver minha barra na prateleira. Disseram que elas haviam vencido e o pessoal recolheu. Indignada, peguei outra marca e paguei, quando estava de saída alguém do mercado gritou “Ainda tem uma...” Eu nem me virei para ver quem era, estava tão brava que apenas andei para casa e fechei a porta.

Lícia Loltran
Graduanda do 2º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB

A Velha Carolina

As semanas passavam lentamente naquele lugar que, ao invés de ser sua moradia, aprisionava sua liberdade de moço. Queria ir à cidade, precisava encontrar a jovem que lhe roubasse todo desejo e desse significado a sua existência. Os dias, cheios de luz e de mística da pequena Fazenda Carolina enchiam os olhos do Veinho, mas não a alma... Todo encanto se fora, transformando-se em lágrimas até se esgotar com o vazio de cada noite dos sete dias da semana e de quanto tempo tivesse.

Queria ir à cidade, precisava encontrar uma jovem que aliviasse todo desejo de ser quem era em sua plenitude de homem, que roubasse as horas e o sossego, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar.

Queria ir à cidade, meu companheiro, amigo de infância! Eu lembro a rua principal de barro seco, por onde as carroças passavam pra chegar à feira e das casinhas da vila, da criança que acenou na porta, será que já cresceu? Eram duas, mas percebeu somente o nome de uma, Carolina.  Não vemos moças por estas terras, somente a menina que vivia a existir nos olhos do bicho, no qual corria o campo, tocava o gado e os dias.
Gostava de enxugar o rosto molhado de suor e água que escorria no canto do olho de quem era sua realidade, trabalho e ilusão. Veinho inclinou-se, com  ternura sobre o dorso do animal, seu companheiro de labuta, e disse: vou viajar.

Surgira do nada, de onde viria tal poeira? Era o único instante em que podia enxergar Carolina, mas, era, de fato, ela? Não sabia, não sabia se tinha crescido, não sabia se era ilusão, mas via, e ele ainda estava a contemplar a menina nos olhos do bicho até o branco se tornar cinza e escuridão. Agarrado no pescoço do animal partiu depressa, como quem foge do vento, do tempo e de si mesmo. Num galope retardado pela travessia do riacho retira um broto da primeira floração para levar ao seu destino. Agora, não tinha mais tempo, precisava correr, o vento logo acalmaria de novo e a mesma vida logo se clarearia diante dos seus olhos quando avistou a estrada de barro e a mesma casinha na qual as meninas brincavam na porta.

Queria ir à cidade e encontrar as mesmas meninas. Será que Carolina cresceu? Precisava encontrar a jovem que aliviasse todo o seu desejo, que arrancasse de dentro o tempo que não resolveu passar. Uma senhora aparece com uma jovem na porta, com as mesmas feições de juventude guardadas na memória de Veinho que entregou a flor do Mandacaru e disse: Carolina? E a menina pergunta: Essa flor é pra vozinha? Vou levar lá dentro. Veinho compreendeu, então, que o tempo lhe passara despercebido diante dos seus olhos empoeirados.

Precisava voltar pra Fazenda Carolina onde a menina esperava por ele, jovem nos olhos do bicho. Como de costume, antes de montar, enxugou o rosto molhado de suor e água que escorreu no canto do olho. O dia começa a clarear. E a velha irmã gêmea Carolina, aparece na porta de casa para acenar um novo adeus.

Michael Ribeiro
Graduando do 6º período do Curso de Jornalismo em Multimeios da UNEB